NOSSAS HISTÓRIAS, NOSSA GENTE por Ruth Guimarães

NOSSAS HISTÓRIAS, NOSSA GENTE


Ruth Guimarães

O que me inquieta verdadeiramente, em toda a movimentação da literatura infantil brasileira (ou da falta dela) é a eterna repetição dos temas antigos da literatura infantil vindos de outras plagas, e mal adaptados por nós, a ponte de nada terem, didaticamente, com a nossa maneira de ser de mestiços de sub-trópico.

Não por falta de elementos.  Nosso folclore é rico e muito pesquisado.  Temos Luiz da Câmara Cascudo, Amadeu Amaral, o próprio Guimarães Rosa, e Lobato dos primeiros livros.

Aconteceram outras contaminações:


Histórias de senzala, como a de  Quimbungo, foram  registradas - um grande contingente.  E veio dessa tribo toda uma teogonia e todo um reino de fadas: a Uiara, a Cobra Grande.

Na prosa, os escritores não se importaram muito.

Porém na poesia, por exemplo, Cassiano Ricardo contou:

“Então, ele encontrou a cobra Grande, que disse:  Eu tenho a noite.  Deu-lhe um coco, para ser aberto apenas em presença do amor e da morte, ou da morte.  No caminho, ouvindo o rumor das coisas noturnas, o índio não resistiu à curiosidade e abriu o fruto.  Coisas extraordinárias aconteceram.  Houve completa escuridão.  A manhã que despontou depois de algumas horas matou o índio curioso espetado numa flecha de sol.”

A índia quando soube da morte do amado:

“chorou tanto, que as gotas do seu pranto se tornaram estrelas... E algumas lágrimas que caíram pelos campos, viraram pirilampos...”



Histórias que falam de um tal de Dito Salvador, índio puro.  Morava do lado da serra. Pernas tortas, nariz em bico de águia, escurão, baixo, magro, seco, enxuto, calado, sem risos.  Olhos repuxados nos cantos, tinha dentes magníficos, que limpava a poder de lascas de fumo, esfregadas com a saliva.  Não usava enfeites tribais, ninguém sabia de onde tinha vindo.  Aparecia na cidade de vez em quando, para comprar querosene e sal.  O andar era deslizante, sem sacudir o corpo, como o de um gato. Tinha uma plantação de fumo num morro perdido, e lá morava com a família, que ninguém conhecia.  Vestia-se da maneira mais comum, como um caipira.  Calças riscadas, camisa xadrez, andava descalço.   De vez em quando ouvia-se da banda onde morava um foguetório.  Era o bugre que vinha com um esquifezinho de criança embaixo do braço, a espaços descansando-o no chão, para soltar foguetes.  Que é isso? Está contente porque o filho morreu? O que Deus me emprestou, estou devolvendo.  Eu sei que foi pra bom lugar.  É anjo.  Por essa nova versão da história de Jó, presumia-se ter sido o bugre adotado por alguma ordem religiosa, ou ter sido agregado.  Como se viu, tinha nome de cristão.

Que conheciam os índios? o sol, a noite, o rio, o macaco, a preá, a onça.  Que queriam eles? Viver.  Além do comer, do beber, do reproduzir-se, queriam também saber quem os tinha feito.  Que faziam eles neste mundo.

Conforme Couto de Magalhães, a teogonia indígena se refere ao sol, Coaraci ou Guaraci, criador de todos os seres viventes.  Jaci, a lua, mãe e esposa de Guaraci, e mãe de todas as coisas, venerada e festejada, senhora de ritos.

A floresta que era o seu sustento, refúgio, casa, céu, despensa, tugúrio, propriedade, quem a protegeria? E veio o Curupira, Caapora, duende espantoso, protetor das matas e dos bichos.  E veio Anhangá, dono da caça dos matos, espírito separado, demoníaco, às vezes bom, às vezes mau.  Poderoso,

Desde os tempos mais primários, mais selvagens, até um grego do quinto século, até um Heidegger ou um Sartre, desde o homem das cavernas ao camponês bretão, do habitante da palhoça amazônica ao ocupante das mansões do Morumbi, todos querem explicação para o que lhes acontece, sem o que ninguém poderá tolerar em certos momentos negros esta negra vida.  E aí está porque todos os contos ameríndios do Brasil são etiológicos e tentam explicar a cosmogonia ou a origem dos animais.

Os índios estão em nós, já o dissemos.

Diluídos  na linguagem, por exemplo.  Foram os falares indígenas que emprestaram à Língua Portuguesa, mais surda e mais martelada, a rica tonalidade brasileira, cantada, lenta, de vogais escandidas bem abertas e de sonoros nasalamentos.  Isto na fonética.  O vocabulário ficou milionário e original, de palavras nunca dantes conhecidas.  Nomes de peixes, de plantas, de frutos, de animais: de répteis, principalmente da grande variedade das cobras, dos quelônios, dos bichos de pena e de pêlo.

E os antropônimos?

E os topônimos?

E até na morfologia, apesar do seu extremo atraso e de serem os nossos indígenas um povo ágrafo, ficaram os sufixos e prefixos.  Quem não conhece as fórmulas: mirim, guaçu, uçu, como em Imirim, água pequena, jararacuçu, jararaca grande; una como em boiúna, a cobra preta, graúna, pixuna.

Taiova, urucu, cambará, embaúva, sapucaia, tajá, caraguatá, imbê, taituiá, suçuaiá, trapoeiraba, maracujá, sapoti, abacaxi, iguapé, tucum,  pitanga, goiaba, jacaratiá, gerivá, taquari, ipecacuanha – são todos nomes indígenas de uso doméstico e cotidiano, na região.  E outros e outros.

E sanhaço, sabiá, saracura, arara, anum, nhambu-xororô, mutum, guará, paca, tatu, cutia, preá, capivara, anta, jacaré.

Em que língua do mundo há um vocabulário de tal música?


 colaboração Olavo Botelho

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