Marinheira no Mundo por Ruth Botelho

Marinheira no Mundo


 Ruth Guimarães

 Um dia, ainda hei de sumir no mundo. As estradas estão aí abertas, tentação na frente de quem não cogita de andar por elas. Buldogues perigosos de fundo de chácara vemos amarrados a uma coleira de couro, a coleira a uma corrente, a corrente deslizando num arame que vai até ali e dali até aqui. Esse caminho inglório é o que fazemos sem cessar. Eu vi um desses, dando pulos impossíveis e voltando quase estrangulado, os uivos, o sufocavam, a baba escorria pelos cantos negros das mandíbulas da fera. Garras poderosas, patas possantes, fauces gigantescas, tudo desperdiçado na corrente. Ventos ásperos, tempestades, vida, liberdade e ele na corrente!


Há destinos piores. Lembro-me que vi, em olaria pobre e antiga, de um tal de Zé Miguel, um burro preto jungido à almanjarra. Dava voltas e voltas e mais voltas, a andava e andava, um infinito que começava a acabava no mesmo lugar.

Um dia, eu serei marinheira no mundo, quando, não sei. Como, não sei.

Barco para a ventura, no mar, sob o céu altíssimo, tocando em portos de língua estranha e de estranha gente. Hoje está aqui e amanhã, onde estará? Espera-o a glória? O naufrágio? A luz. O fundo do mar.

Barco dos desejos. Ah! Barco de cálidos adeuses e de amáveis chegadas!

Barco da serenidade, das doces cantigas, barco de ver o dia em prata e silencio. A maruja leal, a proa de esquisito perfil, e o vento vêm, vento que vem.

Um dia, eu serei marinheira no mundo, quando, não sei. Como, não sei. Há barcos de muito jeito.

E se não for de outro modo me mando no barco do esquecimento. Marinheira no mundo, nesse mesmo eu vou. Talvez entre algas, talvez entre luas e plumas. Os peixes passarão diante dos meus olhos abertos e oceanos de silencio se erguerão de todos os lados, intransponíveis. Estarei viajando, para onde ninguém me alcança, marinheira no mundo.

Se me chamarem, não ouvirei, que a água amarga não deixa. Se me acenarem, não verei, que a alga esparsa não deixa. Se me tocarem, não sentirei. O frio da onda não deixa. Se me quiserem, não serei, não estarei. E responder, não poderei. O silencio sela meus lábios. Não deixa.


 colaboração Olavo Botelho

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