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Mostrando postagens de junho, 2013

PRETÉRITO QUASE PERFEITO por Ruth Botelho

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PRETÉRITO QUASE PERFEITO  Ruth Guimarães  A mercância não desiste.  Não nos dá folga.  Não nos deixa raciocinar, não pára de produzir novidades.  A cada invenção, a cada melhoria e aperfeiçoamento, assimilamos mais uma experiência de desutilidade.  Desculpem o palavrão.  Ficamos escravos de mais uma necessidade que não nos serve para nada.  Porque não nos faz crescer em alma e dignidade.  E nem mesmo em saúde.  O automóvel e o estofado do escritório nos dão hemorróidas.  O microfone, a caixa de som, o alto-falante nos deixam surdos.  E não se fala das momentosas novidades do aquecimento geral, do buraco negro, do ozônio, da poluição, dos rios e dos ares e por aí afora.  Não há nenhum invento, como o avião, por exemplo, do qual o uso, o abuso, o mau uso, não transformem em inimigo da humanidade.  Está aí o plástico.  Estão aí as usinas nucleares.  A serra elétrica.  A lambreta.  O urutum e a polícia.   Os chefes de governo, a pseudo-democracia e os políticos. O que perdemos de mais impo

PIOLHO – essa praga por Ruth Botelho

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PIOLHO – essa praga Ruth Guimarães Inseto da ordem dos Anaplura.  A espécie que nos interessa é o chamado Pediculus Humanus, que produz os ovos popularmente denominados lêndeas, e que, reproduzindo-se escondido nos cabelos da cabeça, é de difícil extinção. O piolho tem a característica singular, entre os animais, de ser ao mesmo tempo causador de algumas doenças e remédio para outras.  Entre as doenças de que é considerado causa estão o tifo exantemático e a ftiríase.  Consiste  esta última na formação de placas hemorrágicas principiando na cabeça e espalhando-se por todo o corpo, acompanhadas de irritação da pele e coceira. Houve e há muita coisa pavorosa neste mundo e não é dos horrores menores a doença atribuída a Lucius Cornelius Silla, general da Roma antiga, que, segundo Plutarco, tinha a carne corrompida, e o corpo todo numa podridão terrível.  Arrebentavam-se-lhe pústulas pelo corpo e logo se enchiam de piolhos.  Por mais que inúmeras pessoas o despiolhassem, e o banhassem, não

9000 Dias roubados de uma vida

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9000 Dias roubados de uma vida - por Regina Rousseau À Mandela Nelson Mandela Um espelho partido pelo chão esparramado refletia seu rosto que envelhecia cada dia. Solidão, vultos, livros e lembranças ... Entre paredes vazias, ele se alimentava de esperanças. Sua mente sentia que o remédio para a não perder a lucidez estava naqueles momentos psicografando não um passado, mas sim o futuro, que estava por vir sem talvez. E mesmo que o deserto avançasse contra ele, mesmo que a esperança parecesse lhe faltar, mesmo que o dia anoitecesse em sua alma, ele esperava pelas estrelas para andar, guardando o caminho da luz, da fé, da certeza: a visão de uma Nação livre como dádiva divina, que se agitava ao sol de ouro que estava por surgir. Do ouro feito de sua cor: a cor de sua alma. Seus olhos rompiam manhãs tediosas, horas terríveis passadas ao largo do tempo sem poder ouvir os risos dos filhos, o olhar da mulher amada. Mas em sintonia com o Eterno, ele guardava-se invicto Naquele que é maior do

PESCADOR DE SEREIAS por Ruth Botelho

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PESCADOR DE SEREIAS Ruth Guimarães           Para os meados de outubro, quando as chuvas mal começaram e o rio, tendo crescido e amarelado um pouco, principia de se apinchar debaixo das moitas, aperparando local de traíra, então é tempo de cascudo. Pois então a gente foi caçar cascudo. A ida foi um farrancho alegre, houve risos, anedotas, falatório, pessoal contador de vantagem abrindo os braços, assim, para mostrar tamanho de peixe. E cantoria, apesar de que brasileiro não é gente de muito cantar. Até dona Adelaide, que gosta mesmo de pescar é de caniço e samburá, foi; até o Toninho do Ciano, pescador afamado dos dourados de dezessete quilos e mais, foi. Até João Serafim, que uma vez andou correndo da polícia, porque virou o peixame todo do rio de barriga pra cima, com uma carga braba de timbó, foi. Esse João foi o tal que jogou a rede certa noite, pesou no arrasto, será muito peixe? que ele se perguntou, cismado. Era sereia. A coitadinha veio se batendo, o olho verde lumiando, a boca

Paulo, o meu amigo por Ruth Guimarães Botelho

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Paulo, o meu amigo  Ruth Guimarães “Esse menino é tentado” – disse a avó, olhando-o de lado, nem um pouco satisfeita, mas procurando defini-lo ou quem sabe compreendê-lo. Não, ela não estava conformada com esse filho de Maria, principalmente o menor, Paulo, aquele saci. Era de se esperar. Toda vida ouvi falar que todo Paulo é levado. Eu bem que avisei a Maria que não pusesse esse nome no menino. E era toda família a prever e a lamentar que esse menino levado ainda ia dar muita dor de cabeça. Todos se preocupavam, menos o menino levado, que cresceu em inteligência, em alegria, mas não em juízo, nem em sabedoria. Ah! esse Paulo. Ah! esse menino!  À medida que crescia o menino foi-se tornando antipático. Primeiro, deixou de rir, como todas as crianças. Deixou qualquer proceder de lado, não mais atendendo às recomendações dos mais velhos. Esse menino pensa que sabe tudo, dizia a avó. E bem no fundo do coração uma dorzinha pungia. Vendo-se rejeitado, o menino levado quem disse que se tornou

O testemunho do Alemão

O testemunho do Alemão  Ruth Guimarães  O pessoal arranjou um vagão de bom tamanho, não sei onde, diz-que para colocar no bosque, com fins turísticos. Enquanto não se arrumava o local o monstrengo foi estacionado aqui e ali, pelas ruas, sempre incomodando. Até que alguém sugeriu que se poderia largá-lo no lixão, que era da Prefeitura, isto é, não tinha cerca nem dono, era espaçoso e o vagão e não incomodaria ninguém. E lá se foi o elefante branco para o lixão. Dias depois os catadores de lixo deram o alarme. Gente! O vagão sumiu! O que atraiu muita gente para o local. É, sumiu mesmo! Pra onde foi? Pra onde não foi? Acabaram prendendo dois suspeitos: o Quintanilha e o Nicodemos. Se alguém viu alguma coisa foi o Alemão, que sai tarde do serviço e passa por aqui todos os dias. E o Alemão foi intimado a comparecer perante o juiz e prestar depoimento. Foi procurado então pelos advogados dos suspeitos, queriam ensinar-lhe como fazer o depoimento. Procuraram adoçar a pílula. -                

O Sonho por Ruth Guimarães Botelho

O Sonho Ruth Guimarães  Qual o melhor, o mais cobiçado e buscado de todos os sonhos? Evidentemente o sonho de ganhar dinheiro sem esforço.  Até Jeová parece que estava de acordo com estava opinião, pois quando o homem, o primeiro homem, pecou por desobediência e curiosidade, o castigo foi ele conseguir o sustento com o suor do rosto, maneira metafórica de dizer: Vá trabalhar vagabundo.  E assim, nosso pai Adão e nossa mãe Eva foram expulsos do Paraíso Terrestre, Éden chamado, onde viviam esplendidamente, comiam, bebiam, não precisavam comprar roupas em butiques. Em suma: não trabalhavam, nem pagavam.  Onde estaria situado este tal Jardim do Éden? Consta que regado por quatro grandes rios: o primeiro é o Fison, que contorna todo o país de Evilat, este onde ouro brota da areia. O segundo é o Gion que rodeia a Etiópia. O rio Tigre é o terceiro, encaminha-se para as bandas dos assírios. O quarto rio é o Eufrates.  No começo, quando Terra e mares estavam recém-criados, Geo, a Terra, produzi

O POVO DAS MIL-E-UMA-NOITES por Ruth Botelho

O POVO DAS MIL-E-UMA-NOITES Ruth Guimarães  Onde será que fica Bagdá? Perguntava eu, enquanto me chegavam as mais auspiciosas notícias desse reino. Contava-se, - mas Alá é o mais sábio – que em alguma noite entre as noites o califa Harum Al-Rachid, tomado de insônia, saía sozinho de seu palácio e ia dar uma volta nos arredores do palácio, para espairecer o tédio. Ainda não se falava em assaltos nem em seqüestros em plena cidade. O Califa podia andar sozinho, sem estar cercado de guardas nem fechado numa limusine ultra defendida com placas de aço e vidros inquebráveis. Os ladrões deixavam-se estar nas altas montanhas, onde imperava eterna a primavera. E o califa, nos seus passeios, somente encontrava escravas belíssimas que sabiam tirar vinte e um sons diferentes, cada um mais admirável que os outros, do seu alaúde. Incidentemente o califa teria oportunidade de fazer justiça pessoal, sem a interferência de emires ou do vizir. A dolce vita era praticar a bela escrita, ler o alcorão, apr

O ENGANO por Ruth Guimarães Botelho

O ENGANO Ruth Guimarães Era uma noite estranha: pingos de prata no céu, os coqueiros se descabelando, numa paisagem de calendário. E, no silêncio, por demais vazio, um cheiro doce de angélicas machucadas. Uma primeira comunicação por telefone houvera resultado num imbróglio . Alguém atendera: A embaixada paulista? Sim, senhora! Podem vir. Mas, repentinamente, como quem se dá conta: E quem é a senhora? O que?! Uma das professoras? O que?! Dirige a delegação?!! Então vieram senhoras também? E moças?! Catorze! Aaaah! E em seguida, como se tivesse agarrado uma cobra: um instantezinho. Vou acordar o coronel! O meu pessoal perplexo, em pé, perto das malas, na rodoviária deserta de Salvador aguardando, duvidava: Era lá mesmo? Que há com eles? Não tinham dito que sim? A voz no telefone voltou daí a um século: O coronel disse que podem vir para cá. Ele resolve. Resolve? Afinal, o que estava errado? No saguão do pavilhão B esperava o tenente coronel Genival de Freitas, com seu todo de diplomata.

NOTICIAS DE ESPORTE por Ruth Guimarães

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NOTICIAS DE ESPORTE  Ruth Guimarães  O glorioso C. F. C. (Cachoeira Futebol Clube) era um time que não brincava em serviço. Negócio dos jogadores, ou do técnico, ou de quem se arvorava em treinador, era ganhar: no apito, no tapa, na bola, na pancadaria, no grito, ganhavam os craques no campo e a torcida no murro, qualquer forma de ganhar era boa para o invicto. Havia uma rivalidade, isto é, uma inimizade congênita, por assim dizer, entre o Cachoeira F. C. e todos os outros clubes do Vale. Depois do jogo, e às vezes até durante, era pancadaria na certa. Nicácio Soldado e mais três milicos apareciam e muita gente ia em cana. Ia-se alegremente, é verdade, cadeia não foi feita pra cachorro, foi feita pra torcedor. No dia seguinte, uma segunda-feira de serviço, os parentes ou os patrões dos baderneiros iam retirá-los, mediante uma fiancinha. Isso quando era em casa. E então o glorioso foi convidado para um amistoso em Quiririm. -         Tá no papo! – diziamos nossos, os mais exaltados de b

NOSSAS HISTÓRIAS, NOSSA GENTE por Ruth Guimarães

NOSSAS HISTÓRIAS, NOSSA GENTE Ruth Guimarães O que me inquieta verdadeiramente, em toda a movimentação da literatura infantil brasileira (ou da falta dela) é a eterna repetição dos temas antigos da literatura infantil vindos de outras plagas, e mal adaptados por nós, a ponte de nada terem, didaticamente, com a nossa maneira de ser de mestiços de sub-trópico. Não por falta de elementos.  Nosso folclore é rico e muito pesquisado.  Temos Luiz da Câmara Cascudo, Amadeu Amaral, o próprio Guimarães Rosa, e Lobato dos primeiros livros. Aconteceram outras contaminações: Histórias de senzala, como a de  Quimbungo, foram  registradas - um grande contingente.  E veio dessa tribo toda uma teogonia e todo um reino de fadas: a Uiara, a Cobra Grande. Na prosa, os escritores não se importaram muito. Porém na poesia, por exemplo, Cassiano Ricardo contou: “Então, ele encontrou a cobra Grande, que disse:  Eu tenho a noite.  Deu-lhe um coco, para ser aberto apenas em presença do amor e da morte, ou da mor

NASCIMENTO, PAIXÃO E MORTE DE SILVESTRE por Ruth Guimarães

NASCIMENTO, PAIXÃO E MORTE DE SILVESTRE Ruth Guimarães Silvestre nasceu numa noite de lua, a meio caminho entre a floresta e o mar. Foi na noite de 31 para o primeiro do ano. “João - disse a mãe - olhe na folhinha, que nome ele trouxe.” “Silvestre”, - disse o marido. Dependurou a rede de pescar, escancarou a porta. Por ela entrou o ar salino, forte, cheirando a maresia. O mar denso, verde-garrafa, se mostrou todo borrifado de prata, quando a lua apareceu. “Comadre fica com você, Rosa.” Quando amou Silvestre o fez ao rude contato de asperezas inesquecíveis. Teve a amplidão, a terra nua. As areias. O embalo eterno da voz eterna do mar. E teve silêncio. Porque a voz do mar era tão obstinadamente constante que acabou por não ouvi-la mais. Me contaram que a moça tinha um brilho molhado no olhar, com reflexos de lâmina, relampeando no escuro. Silvestre impeliu a canoa. O céu, o mar, o próprio ar pesado, era tudo uma escuridão só. O mar roncou soturno, relâmpagos cortaram as trevas. Foi o inf

NÃO É HORA... por Ruth Botelho

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NÃO É HORA... Ruth Guimarães Decididamente não é hora de falar de mãe. Apesar de estar o noticiário recheado de tragédias, e de o assunto se prestar às lágrimas comovidas, próprias da nossa sensibilidade de brasileiros, não é hora de falar de mães. No entanto, hoje mais do que nunca, a vida sussurra, sem descanso, sem intervalo, que chegou o momento. A humanidade aprende e se aprende. Cada lição custa pranto, desordens, desajustamento, mas afinal as alterações ocorrem, e o mundo caminha melhor até a nova crise da civilização em mudança. É verdade que a palavra mãe, como a palavra amor, já virou palavrão. Ainda assim indica o doce,  o imensurável, o excelso mistério da vida. E lá voltamos nós à mulher no seu envolvimento mágico abissal com o mistério. Amor e compaixão distinguem a Mãe daquela que apenas põe uma criatura no mundo como qualquer fêmea do reino animal, com seu instinto de defesa da cria. Esse instinto não se esvaiu na fêmea humana civilizada, apesar de todos os embaraços e

Salve 93 anos de Ruth! por Regina Rousseau

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Salve 93 anos de Ruth! Ela nasceu às margens do Paraíba, em 13 de junho de 1920 em Cachoeira Paulista. Cresceu num Vale encantado - espaço entre duas grandes montanhas de onde brota um rio. Desde pequena, a menina Ruth, encantou-se pelas letras e ainda criança compôs seu primeiro poema. À sua porta, o céu se abria para a rósea manhã que amanhecia com ipês coloridos. Numa chácara, um lugar perdido do paraíso, nas noites cachoeirenses, ela passou a contar a saga das aventuras humanas e das fantasias folclóricas, suas personagens caboclas, em meio a casinhas de pau-a-pique, em textos singelos como a sua gente, com a alma da poesia correndo pelas veias. O cenário era de duas catedrais: uma no alto do morro, encostada ao céu; outra, refletida no espelho das águas. A cidade e seu entardecer, o cair da noite, quando as árvores nuas tremem ao vento norte, e as pessoas caminham de volta para casa, pelas ruas que escurecem e silenciam... onde só se ouvem a melodia de grilos, sacis, corujinhas-d

MENTIRAS E MENTIROSOS por Ruth Guimarães

MENTIRAS E MENTIROSOS Ruth Guimarães Era uma vez um menino chamado Marco Pólo, que nasceu em Veneza , em 1254.  Filho e sobrinho de dois aventureiros, mercadores que faziam negócios para os lados do Mar Negro e do Império Tártaro.  Chamavam-se Nicolò e Mateo.  Numa de suas costumeiras excursões foram encarregados pelo Grão Cão dos tártaros, Kublai, de uma embaixada junto ao Papa.  Nessa viagem levaram tanto tempo que, quando voltaram a Veneza, Nicolò encontrou com quinze anos o filho que nem nascido era quando o pai saiu de casa.  A esposa tinha morrido. Mas a coceira das viagens não abandonou o atrevido veneziano.  Voltou ao país dos tártaros, desta vez acompanhado pelo filho Marco Pólo.  Mais de vinte anos ficou o moço a serviço do Kublai, que lhe admirava a inteligência viva, as qualidades de diplomata, seu conhecimento das línguas. Marco Pólo percorreu, como embaixador do Kublai, grande parte da China Ocidental, a Insulíndia, as costas da Índia e o Golfo Pérsico. Um belo dia voltou

Matinada por Ruth Guimarães Botelho

Matinada Ruth Guimarães De manhãzinha, alguma coisa estava acontecendo, no ar, nas ruas, no céu. O que havia? Qualquer coisa inusitada. Rumor em demasia. Um susto, parecia. Canto em cascata de duas qualidades diferentes de pios. De uma parte um susto, um protesto. Mas escutem: que barulho é esse? Uma senhora matinada. Eram as maracanãs, uma espécie de papagainho sem graça, barulhenta gritadeira, madrugando para incomodar. O céu está sereno, de um azul consolador. De repente, não mais que de repente, a manhãzinha se encheu gloriosamente de uma barulhenta matinada. - Que foi isso, gente? – indagou a Baita, saindo ao terreiro com as mãos em concha acima dos olhos. As coisas estão mudadas, mas alguma coisa permanece. As coisas estavam muito mudadas. A luz, as sombras. O beijo quente do calor na pele. Aquele revérbero, nos olhos, quando o rio desliza e caminha. Por exemplo, as flores se oferecem em beleza e são um chamado. Temos que contemplá-las. Temos que aprender que é primavera. O campo

Marinheira no Mundo por Ruth Botelho

Marinheira no Mundo  Ruth Guimarães  Um dia, ainda hei de sumir no mundo. As estradas estão aí abertas, tentação na frente de quem não cogita de andar por elas. Buldogues perigosos de fundo de chácara vemos amarrados a uma coleira de couro, a coleira a uma corrente, a corrente deslizando num arame que vai até ali e dali até aqui. Esse caminho inglório é o que fazemos sem cessar. Eu vi um desses, dando pulos impossíveis e voltando quase estrangulado, os uivos, o sufocavam, a baba escorria pelos cantos negros das mandíbulas da fera. Garras poderosas, patas possantes, fauces gigantescas, tudo desperdiçado na corrente. Ventos ásperos, tempestades, vida, liberdade e ele na corrente! Há destinos piores. Lembro-me que vi, em olaria pobre e antiga, de um tal de Zé Miguel, um burro preto jungido à almanjarra. Dava voltas e voltas e mais voltas, a andava e andava, um infinito que começava a acabava no mesmo lugar. Um dia, eu serei marinheira no mundo, quando, não sei. Como, não sei. Barco para a

Conto de natal por Ruth Botelho

     Conto de natal Ruth Guimarães Quem atendia a porta era uma caipirinha matreira, de olhos negros buliçosos, riso muito cheio de covinhas, a cor da boca bem cortada avivada com papel vermelho, e o cabelo escorrido de Cabocla encrespado a papelote. “Sêo” João Caetano teria seus cinqüenta bem contados, mas o riso dela o encorajou. Demais, ela sabia as respostas, tinha ensino, não era nenhuma lambeta da cidade. -Sua graça, inda que mal pregunte – que ele falou em tom meio enleado. -Prigunta bem. – Ela deu a contra-senha. – Maria das Dores, sua criada. -Criada de Deus – secundou “Sêo” João, tocando no chapéu de palha. E foi assim, isto é, terá havido um antes. Quem pode colocar o principio das coisas no seu verdadeiro principio? Foi o olhar que promete e nagaceia, foi o muchocho de falso pouco caso, desmentido pelo sorriso, foi a conversar sem sentido, mas entremeada de dúbias significações. A certa altura ele se sentiu autorizado a fazer as perguntas fundamentais. Das dores, ‘cê gosta

Padre Mario Bonatti veste as sandálias de Francisco! por Regina Rousseau

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Padre Mario Bonatti veste as sandálias de Francisco! Padre Mario Bonatti, é natural da localidade entre Rio dos Cedros e Pomerode em Santa Catarina. Duas cidades onde atualmente, tenho amigos que posso compartilhar da história desse padre que há muito tempo imigrou para Lorena, tornando-se um lorenense de coração. Padre Salesiano de Dom Bosco, ordenado sacerdote em Turin, Itália, onde cursou Teologia e Filosofia na Pontifícia Universidade Salesiana. Voltando ao Brasil, realizou pesquisa para tese de doutorado comparando o dialeto trentino de Rio dos Cedros com o que é falado em Trento (Mattarello). Foi professor universitário de línguas, Antropologia Cultural e Filosofia em Lorena; Linguística Antropológica no programa de Mestrado em Linguística na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis e Linguística Geral na Universidade de Coimbra, em Portugal. Sempre manteve o interesse pelos estudos históricos. Uma experiência multicultural convivendo, desde a infância, com italia

CHINESICES por Ruth Guimarães Botelho

CHINESICES Ruth Guimarães Na China é geral o uso da cabeça raspada, para os homens, tendo no centro do crânio, atrás, o cabelo trançado em rabicho. A roupa feminina é modesta, blusão solto, fechado no pescoço, descendo em linhas singelas até os joelhos, sobre calças justas. Ou então apenas o camisolão solto, do pescoço ao pé. Marco Polo contava, em meio à incredulidade geral e às risadas que tal menção provocava, que as mulheres de Badakscinam usavam calças de linho. Eram usados poucos ornamentos. O imperador trazia no seu vestuário figuras de dragão. Naturalmente, num país antigo e enorme como a China, haverá uma infinidade de variações no vestuário. Entretanto, tomando-se para modelo a maneira mais geral de vestir, nota-se escassa diferença entre as roupas de homem e mulher. É sempre a bata larga e solta, mangas amplas, as calças folgadas e curtas. Vemos jaquetas sobre a bata, às vezes sem manga. Essas jaquetas são feitas de tal maneira que podem ser vestidas umas sobre as outras, co

AS MÃES ESCOLHIDAS por Ruth Botelho

AS MÃES ESCOLHIDAS Ruth Guimarães A trindade védica era composta de três pessoas: Brama, Vishnu e Siva, sendo o primeiro criador, o segundo conservador e o terceiro transformador. A santa sílaba primitiva, AUM, referia-se às três pessoas, uma letra para cada uma. A segunda pessoa da Trindade, Vishnu, apareceu entre os homens cinco vezes. Foram estas as encarnações: Vamana, Parassurama, Rama, Críxena e Buda. No avatar particular de Críxena, Vishnu nasceu no undécimo dia da lua, do seio de uma virgem. Ela era de linhagem real. Tinha a marcha graciosa como de um cisne que desliza. Seu corpo era revestido de um velo dourado e fino como a flor de lótus. Chamava-se Devanagüi. Numa noite em que mergulhara num sono profundo sonhou que se levantara do leito e fora para as margens do lago sagrado de Madaura, para fazer as abluções prescritas. Então cercou-a uma nuvem luminosa. Os seios seus estremeceram como os da virgem  que se entrega ao esposo. Da terra onde ela tombou brotou um ramo de videi

JUNHO por Ruth Botelho

JUNHO Ruth Guimarães Antigamente, quando se soltavam balões, toda gente gritava quando os via: Olhem o balão, lá em cima. Como é belo! Mas ninguém gritava: Olhem as estrelas! Ninguém fazia caso delas. Eram tão banais as estrelas! Quem se incomoda com o que permanece? Se vivêssemos quanto bastasse para vermos as estrelas se apagarem, elas pareceriam mil vezes mais belas. Depois de mortas. E teceríamos ditirambos às estrelas. Que medo temos da morte! Como a enfeitamos com palavras retumbantes, com o rufar dos tambores, com bandeiras e condecorações, com urnas de luxo e mármores de Carrara.E títulos e saudades e lembranças e flores.E o comedido falar e o evidente respeito, a roupa sombria do luto, a missa de sétimo dia e a notícia no jornal.E a coroa e o epitáfio.E com que entonação falamos dela! Dar-se-á que nos parece menos horrível se a chamamos heróica? As nossas palavras também passam.Como nós, como os balões, como as estrelas. O que tememos? Dentro da morte está latente a vida. Só a

João, o queijeiro por Ruth Botelho

João, o queijeiro Ruth Guimarães Sabe onde fica o bairro dos Macacos? Pois, a cavalo, fica umas três horas pra lá. É como João Emboava explica o caminho entre o sitiozinho no sertão de Cunha e a cidade de Cachoeira Paulista. Entre essas duas pontas geográficas, está Silveiras, se resolvemos seguir pela Rodovia dos Tropeiros. Subindo pela Rodovia Paulo Virgínio, passamos pela entrada de Lagoinha – e, em conseqüência, de São Luiz do Paraitinga, atravessamos o centro urbano de Cunha e seguimos em direção do sertão de Campos Novos. Viagem comprida, por este ou por aquele caminho. O pobre do Emboava, que vem de uma grande família de fazendeiros, faz muito esforço pra viver. Custa-lhe manter a fabriquinha de um alimento meio difícil de vender. Mandar o leite para as cooperativas não compensa – são só seis vaquinhas. Os fazendeiros da região resolveram, ultimamente, alugar seus açudes para pescadores de domingo. O João não. Teima. Faz assim, às quartas e aos sábados: pega o caminhão do leite

Jaraguá nº 2 por Ruth Botelho

Os Cavaleiros do Jaraguá Ruth Guimarães Pois é um quixotismo muito simpático o dos Cavaleiros do Jaraguá. A sede dos Cavaleiros, sua baronia e feudo, fica numa fazenda, na base do morro, e os seus membros percorrem a cavalo a extensa região, procurando evitar incêndios e estragos e preservando as matas. O mato, diríamos melhor, pois que o Jaraguá por culpa exclusiva da nossa falta de consciência florestal, ficou mais pelado do que a cabeça dos cidadãos prósperos. E não é raro que algum alpinista, mal avisado e pior sucedido, role a encosta pedregosa. Às vezes há morte. Outra Cavalaria Andante, é o Núcleo dos Amigos do Jaraguá. Tem, incluída nos seus estatutos, a obrigação de zelar pela tradição, pelas matas do Jaraguá, e manter acesa a chama do entusiasmo pelas coisas nossas. O presidente do Núcleo, sr. Olimpio Rodrigues Coelho, colige matéria para uma possível monografia de orientação histórico-social sobre o morro. Os batalhadores do singular torneio contra a destruição do Jaraguá, e

História de três irmãos por Ruth Guimarães Botelho

História de três irmãos Ruth Guimarães Botelho Um rei que tinha três filhos foi à guerra, montado no seu cavalo Branco, de penacho encarnado.  Venceu o inimigo, que lhe destruía as fronteiras, mas voltou para o seu reino cego.  Muitos médicos se apresentaram, mas nenhum conseguiu curar o soberano.  Então se apresentou um curandeiro que falou: -          Majestade eu sei de um remédio.  Vossa Majestade manda buscar no reino da Pedra Fria, três coisas: uma pena do passarinho de ouro, um copo d’água da cascata de cristal e um ramo verde da árvore que canta. O rei mandou seus filhos.  Os dois primeiros nunca voltaram. O mais novo teve mais sucesso.  Com a água da cascata de cristal orvalhou o chão do Reino das Pedras.  À medida que orvalhava aquele mundo de pedras, iam se levantando moços, crianças, velhos, e toda aquela gente dava gritos de alegria por estar ressuscitando.  E , felicidade maior para o príncipe, os irmãos desaparecidos também se levantaram do chão juntando-se à multidão qu

FUGAS E FUGAS por Ruth Guimarães Botelho

FUGAS E FUGAS Ruth Guimarães Quando um pobre homem se casa, além da independência que aliena, perde para sempre a oportunidade de mandar no que é seu e de estar sozinho; a mulher arruma-lhe as gavetas, mexe-lhe nos bolsos, invade-lhe o quarto, com laçarotes e grampos, atende ao telefone. Quer mandar-lhe até nos pensamentos, pois arenga, continuamente: “Não pense que...” Mas há uma propriedade que a mulher não invade: o automóvel. Por isso mesmo é que se vêem, aos domingos, os orgulhosos proprietários desses fordinhos e chevrolés, polindo e alisando o carro enquanto os macarrões esfriam, e na cozinha anda uma lida dos pecados. É ver-lhes a cara iluminada de felicidade, para saber quanto vale e o que significa um automóvel. É-lhe casa, refúgio, asilo, Pasárgada. Embora todos necessitem da inestimável liberdade que Deus lhes deu, nem todo podem comprar um. Então, a um dá-lhe na veneta pescar na represa do rio Grande, ou em Guararema. Vai pescar, peixe não traz nenhum, que seu objetivo não

FILOSOFIAS por Ruth Botelho

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FILOSOFIAS Ruth Guimarães Botelho Uma referência aqui, outra ali, a gente acaba informada de orelhada de uma porção de assuntos, e um deles é Teilhard de Chardin. Ainda mais agora que uns moços andam se preocupando em alicerçar suas atitudes com a filosofia, o que já não é sem tempo, as menções se fizeram mais freqüentes. Há muitos caminhos neste mundo, mas caminho nunca é demais. E a notícia que nos chegou é que o filósofo francês, através da metafísica, serenou uma desesperada Dalila, que havia recorrido ao suicídio, tão negra lhe parecia antes a vida. Como forma de consolo, evidentemente, funciona. Mas muito antes de Teilhard de Chardin, e sem filosofia nenhuma, eu vou contar: Em Jacareí, pelos arredores de Avareí, por perto da linha da Estrada de Ferro, em cima do morro, em arruamentos novos recém-loteados, há muitos centros, de um espiritismo encabulado, florescendo à sombra da igreja romana e cada um dos que os freqüentam se declaram católicos. “O padre proíbe, sabe? mas lá só se