DA SOLIDARIEDADE por Ruth Guimarães Botelho

 DA SOLIDARIEDADE

Ruth Guimarães

Malba Tahan, ou Sherazade nas Mil e Uma Noites, não sei bem quem, contou a história de um ganancioso mercador que cozinhava certa porção de carne, quando um mendigo faminto quis amaciar o pão velho do seu alforge, e torná-lo mais tragável, virando e revirando a côdea sobre a fumaça que se desprendia do caldeirão. O dono do cozido quis cobrar a fumaça, alegando que se o cozido era seu, a fumaça também era.
Ninguém tinha o direito de se aproveitar dela sem pagar. Tanto discutiram que o caso foi levado ao grão-vizir. E foi então, o esclarecido primeiro ministro do sultão perguntou ao mendigo:

-         Tem você algum dinheiro?

-         Alguns níqueis que me deram, meu senhor.

-         Passe-os para cá.

Toda a gente pasmou, pensando que o vizir iria obrigar o pobre a pagar.

-         Toma este dinheiro! – disse o vizir ao mercador.  Sacode-o bem.  Faz muito barulho com ele,  para verificar se é bom.  Estás ouvindo como tilinta melodiosamente?

-         Sim, meu senhor. – Disse o ganancioso.

-         Pois bem, sentenciou o vizir.  Devolve já o dinheiro desse pobre homem.  Se já ouviste o seu barulho, é o bastante. Aquele que vende fumaça de cozido pode muito bem ser pago com barulho de dinheiro.

(Sem nenhuma alusão a tanto barulho de dinheiro que estamos ouvindo ultimamente, para pagar a fumaça da abastança).

Lembrei-me da conversa com uma migrante que vinda do sertão do Guanumbi, levou três meses para atravessar o sertão.

-         Passou quase dois anos sem chover. Depois choveu bem.  Plantamos, e, quando chegou o tempo da colheita, bateu água e estragou as plantas. Não tinha mais o de-comer.  Nem farinha.  Largamos tudo. Muitos de nós morreram pelo caminho.  E outros caíram vivos e tivemos que deixar pra trás.  Quando chegamos ao ponto de embarque, lá  havia uma árvore, um mangueirão copado, e a gente nem não agüentava mais, e era preciso pagar cinqüenta centavos por pessoa, pra gente se assentar na sombra.

Demóstenes nos conta do almocreve que queria vender ou alugar a sombra do seu burro.  Essa velha migrante, sofredora de muitas secas, nem quer saber talvez que sombra é coisa que não tem dono.  E talvez tenha pago cinqüenta centavos por um retalho de repouso, que seria seu, de direito, se não existissem mercadores de suor, de sangue, de lágrimas, de sombras e de fumaça de cozido.

Abrimos os jornais cada manhã e lemos notícias dos milhões esvoaçantes, viajando em maletas e em outros envoltórios.

De onde vem tanto dinheiro? Não teria vindo dos repetidos cinqüenta centavos de cada um de nós?

Que recebemos em lugar de Educação, Saúde, Transporte, Tranqüilidade, Segurança? O que compramos com os dinheiros da terra seca, de raízes mastigadas na hora da fome, de brasa viva queimando os pés, do trabalho escravo, da desesperança.

Por enquanto recebemos o tilintar do dinheiro esvoaçante, a sombra dos burros e a fumaça dos cozidos alheios.
Colaboração Olavo Botelho

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