A MOROCHA E A FARTURA

A MOROCHA E A FARTURA


Ruth Guimarães

Morocha não tomou parte em campanha nenhuma, porém foi presa no dia da eleição.  Que isso não lhe fez mossa tornou-se evidente. Morocha é baixa, morena, redonda, de pernas curtas, pacífica, rija, comilona.  Tem boca grande, dentes vigorosos, olhos líquidos, castanhos, com uma estranha luz tranqüila. 
Parece com George Sand, a escritora que buleversou a vida de Musset e de Chopin.  A George Sand bonita da primeira fase.  É a mesma boca generosa, o mesmo nariz de aletas palpitantes, levemente achatado na ponta. Creio que é o mesmo olhar.
 Morocha saiu pela manhã, ninguém prestou atenção, ela anda por onde quer, não perde a hora de voltar para casa. Saiu pela manhã, rebolando como é do seu feitio.  Não é criatura de grandes responsabilidades, mas mantém certos hábitos salutares. Geralmente, na hora do almoço está em casa. Ontem não apareceu.

Foi encontrada às duas horas, deitada no Curral do Conselho da Prefeitura, pastando um capinzinho muito mixuruca que havia por lá, pastinho rapado aquele!

-         Que foi isso, dona? – perguntei de cara feia.

-         Bé! – que ela respondeu.

-         Como veio parar aqui?

-         Bé! – que ela tornou a responder, num tom meio lamentoso.

-         Tinha alguma necessidade de andar tão longe de casa?

-         Bé! Bé!

Explicação que não entendi.  Continuo ignorando porque andar tão longe, se não está de amores; leva filha pequena, não digo no colo, porque a cabritinha mal nasceu se equilibrou nas patinhas espertas e no terceiro dia dava pulos até que muito elásticos.  Então, dei por falta da Fartura.

-         Mas onde anda a Fartura?

Morocha se levantou, encostou um focinho gelado em minha mão e se lamentou novamente, bé, bé, sacudindo o toquinho de rabo esfiapado e as orelhas, e olhando para mim, como se eu tivesse a obrigação de saber onde ela largou a cria.  Fartura tem só quinze dias, as pernas não se lhe sustentam bem nas longas caminhadas.  Parece uma veadinha selvagem, irrequieta, uma formosa veadinha marrom, de brincos e com uma estrela de prata na testa.

-         Eu não sei, não, da Fartura! – defendi-me, - você que saiu com ela, dê conta da menina.  Afinal, a filha é sua, não minha. Ande, vá! Coma seu capim, não me encha! Quem mandou andar batendo pernas?

-         Béééééééé!- que Morocha protestou, num berro longo, choroso.

E com essa fui procurar o funcionário encarregado do curral do conselho e soube que Morocha cometera esta coisa inominável: estivera pastando nos jardins da praça Independência, diante do Fórum, a praça mais bonita da cidade, a menina dos olhos do prefeito. A grama é linda, verdadeira alcatifa, de um verde-galo aveludado.  Ela estava perto do coreto, contou o jardineiro, sob a pérgula.  Sei.  Conheço o lugar.  As roseiras estão floridas.  A quaresmeira também.  A pérgula tem colunas esguias, muito brancas e nelas se enlaçam as trepadeiras.

-         Então Morocha, que vergonheira é essa? Você não tem o que comer em casa? Por muito bonito que seja o capim da praça, é mais apetitoso que o capim-gordura, o capim-angola, o capim-membeca dos fundos da chacrinha? E a cana picada, e as bananas de que você gosta? E a ração de milho, de manhã e na hora do almoço, que você come na mão, hein? Já pra casa!

Ela deu um fungo triste e mais tarde berrou a noite inteira.  Bem sei do que se trata.  A zebua berrou assim, noites e noites, quando comemos o bodinho dela.  Já indaguei de meio mundo, ninguém viu a cabrinha formosa de brincos e estrela na testa, viva como um azougue, esperta como uma corça marronzinha, nome dela é Fartura.  Não adianta nem pôr anúncios em jornal. Numa terra imensa dessas, com tanto capinzal enredado, tanta gente de má intenção, aguardando oportunidade, tantos desatentos, tanta notícia desencontrada, como é que se vai sabe onde se encontra a Fartura?

colaboração Olavo Botelho

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