Ruth Guimarães Botelho - Discurso de posse


Discurso de posse na cadeira 22 da Academia Paulista de Letras, 18 de setembro de 2008

Senhoras e senhores:

Antes que eu cometa algumas afirmações, é mister que me identifique. E o que identifica uma pessoa e o separa do resto da humanidade, talvez seja apenas um momento, que pode ser este, conforme afirmou o meu velho amigo Guimarães Rosa, em palavras para sempre lembradas.
Eu não tinha ainda dezoito anos e vim para São Paulo, para abrir caminho na vida. E isto me palpitava obscuramente escrever. Sozinha. Arranjei trabalho modesto de datilógrafa correspondente, em uma casa comercial, do outro lado do Arouche. Ali, todas as tardes, passeava Dalva de Oliveira, com seu menininho. Peri tinha dois anos. Um dia, atrevidamente, fui procurar Abner Mourão, no defunto Correio Paulistano. Não sei por que Abner me recebeu. Entreguei-lhe uns papéis, ele leu, pachorrentamente. Pôs os dois cotovelos sobre a mesa, me encarou por um momento e disse o que considerei o maior elogio da minha vida: “Foi você MESMO que escreveu isso aí?”

Até agora aquele MESMO me contenta. A vaidade e a esperança precisam de pouco, para florescerem. Pois aquele MESMO me levou a Edgar Cavalheiro, que, na época, editava um jornalzinho literário. O cavalheiro publicou o meu trabalho.
E eu ignorei completamente o isso aí...

Podeis imaginar meu alvoroço. Às seis horas saí com o jornalzinho apertado contra o peito. E pensava e ria, e andava mais depressa ou mais devagar, pensando, lembrando. Cheguei à Praça da República e de repente me lembrei que não tinha ninguém, ninguém mesmo, para mostrar o meu jornalzinho, o meu trabalho, publicado entre vinhetas.
Nesta noite de 18 de setembro, setenta anos depois, sou trazida para este cenáculo, pelas mãos benevolentes dos meus agora confrades e confreiras. Com a responsabilidade de ocupar a cadeira de número 22, ocupada antes por homens brilhantes.

Pareceu a cadeira 22 reservada para os juristas. O patrono foi jurista. Os promotores de Justiça, por seu longo contato com almas extraviadas e sofredoras, desenvolvem uma acuidade maior, parece que um sentimento mais fundo, uma inclinação para os mistérios e, conseqüentemente, para a literatura.
João Monteiro é o patrono da cadeira 22 da Academia Paulista de Letras. Grande responsabilidade a minha, em tocar no nome de insigne colega, que foi chamado o melhor e o maior. João Pereira Monteiro Júnior, jurista, como tantos dos nossos bons escritores, nasceu no Rio de Janeiro. Começou comerciário e bancário, na prática do balcão de vendas ou do arquivo de documentos. Resolveu estudar Direito e veio para São Paulo, com 23 anos. Matriculou-se na velha Faculdade do Largo São Francisco, onde estavam, na época, Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco e Castro Alves, entre outros. São Paulo era então uma cidadezinha de quarenta mil habitantes, garoenta e soturna, com seu manto esfarinhento de neblina. Os lampiões de gás durariam mais uns cinqüenta anos, montando guarda nas velhas ruas.

O primeiro acadêmico da cadeira 22 foi Estevão de Araújo Almeida, formado em Direito em 1886, promotor público da cidade de Campinas. Teve longa e sábia carreira de filólogo e jurisconsulto. Colaborador do jornal O Estado de S. Paulo. Deixou duas obras notáveis de Direito Civil: “O Direito de Família” e “Pareceres”. Até hoje consideradas referenciais. E com isto chegamos ao terceiro jurista, este poeta, Guilherme de Almeida, que ocuparia a mesma cadeira 22 que fora do pai, Estevão de Araújo Almeida. Mas antes que falemos dele, passemos a Raimundo de Meneses, altamente consagrado e o mais premiado dos nossos escritores. Pela biografia de Clóvis Beviláqua, mereceu o prêmio do Ministério de Educação e Cultura de 1959. Pelo trabalho sobre José de Alencar, recebeu da Academia Brasileira de Letras o prêmio Joaquim Nabuco e o prêmio do Pen Clube de São Paulo, em 1968. Não é preciso discorrer mais. Tais prêmios são a consagração de um escritor.

Às vezes o retrato de corpo inteiro de uma criatura é dado por uma palavra, por um suspiro, por uma ação imprevisível. A definição de Odilon Nogueira de Matos é feita, completa e assinada pelo clube que ele inventou: Clube dos 21 Irmãos Amigos de Campinas. Aí está uma confissão, uma lhaneza, uma boa vontade, um se dispor a praticar todas as boas ações. Além do ser em disponibilidade para servir, Odilon tinha uma capacidade de trabalho realmente admirável, a par de uma simplicidade que jamais o afastava da companhia dos muitos amigos que tinha, muito além dos 21 de Campinas. Grande trabalhador o grande Odilon, historiador de alta expressão. Tinha o verbo fácil, a palavra certa. Cativava os auditórios. Argumentava brilhantemente.
Escreveu capítulos da História Colonial de Campinas (1939),
Música e Espiritualidade (1955),
Evolução Urbana de São Paulo, Café e Ferrovias (1974)
Afonso de Taunay, historiador de São Paulo e do Brasil (1977)
Páginas Catarinenses, Saint Hilaire e o Brasil (1980)
A segunda viagem de Saint Hilaire ao Brasil (1980)

e

Um pouco da História de Campinas (1985).

Como se vê, um trabalhador infatigável. Em prosa simples, escorreita, de rica expressão. Estudos trabalhosos de muita pesquisa, de muitas interpretações e conclusões onde entra o mestre. Infatigável, dissemos? Vamos pôr infatigável nisso. Ainda não contamos as edições prefaciadas, os textuários relativos a Goiás, Minas, Sergipe, à Independência, à República, a Campinas. Ainda não contamos a partir de 1969 a continuada edição de A Notícia Bibliográfica e Histórias, publicação trimestral com mais de 140 volumes publicados. Nem os quase 1.500 artigos que constam de seu currículo Lattes. E tudo numa linguagem muito própria do assunto. Vamos dizer serena, vamos dizer simples e grandiosa, como grande música. Ele era capaz de pôr em palavras o seu sentir, o seu pensamento.

Vamos dizer que a arte de Guilherme de Almeida e a de Odilon Nogueira de Matos é, por extensão, a vida desses dois artistas. Eles são artistas da música, através da palavra. Uma para ser declamada, com sutis variações de voz, melodiosos poemas, à meia luz, no silêncio, quando a pessoa se encontra a si mesma e fala de amor dolorido, fracassado. O outro, em grandes obras, como o amor, como as tempestades, como as vergastadas do vento, e é uma penetração no grande mundo ignoto, pávido e misterioso do universo sem explicação. Um o látego do vento, outro um queixume. Música, todos dois. Forças do grande mistério de existir. Um, o poeta do amor. Outro, o operário, força do universo, isto é, o trabalho.

E descubro o grande liame entre esses dois poetas, artistas do ritmo e da melodia.
Um exprimindo-se por meio de palavras.
Outro pelo boleio rítmico das frases e ouvindo dois gigantes da música erudita: Brahms e Mozart, entregando-se à música clássica, vivendo-a, em suma.

Ao vate campineiro Guilherme de Almeida, louvor e glória. Ao poeta excelso, príncipe dos poetas, louvor e glória. Ao paulista combatente de 1932, ao idealista, ao paladino da liberdade, louvor e glória!

Ora, hoje me é dado, me é imposto falar dele, pois vou ocupar uma cadeira que foi sua.
Guilherme de Andrade Almeida nasceu a 24 de junho de 1890. Formou-se em Direito com 22 anos. Advogou, escreveu e traduziu. Publicou o livro “Nós” em 1917, aos 27 anos. Em 1920, “O Livro de Horas de Sóror Dolorosa”. Em 1921 publicou dois livros: “A Dança das Horas” e “Messidor”. Esses foram apenas os primeiros da lista dos mais de sessenta livros de sua fértil produção em poesia, prosa e teatro, para pessoas de todas as idades. Em 1922, em meio às travessuras da Semana de Arte Moderna, publicou “Era uma vez”. Foi o primeiro modernista a entrar para a Academia Brasileira de Letras, em 1930. Na revolução constitucionalista de 1932, levou às últimas conseqüências o seu envolvimento, na defesa do seu ideal. Legou-nos o poema que é quase um hino cívico:
Bandeira de minha terra
Bandeira das trezes listas
São treze lanças de guerra
Cercando o chão dos paulistas
Atuou como redator, no jornal O Estado de S. Paulo, durante 55 anos. Só parou porque a morte o fez parar, em 1969. Está sepultado aqui perto, no Mausoléu do Soldado Constitucionalista, no Parque do Ibirapuera.

Aqui a amplidão. Os temas, grandiosos, universais.

Lá a suavidade, em tons menores, deslizantes, água que corre, flor que se entreabre. E, como dizia o poeta: flor e poema, devagar.
Em Odilon, daí talvez a sua preferência para os grandes temas. Sua obra é uma largueza, um espraiar, um abranger.

Eu conto num instantinho uma outra história (que é meu pecado e minha sina o ser contadeira de histórias). Pois quando eu nirvanamente adolescia, às margens do rio Paraíba, foi-me dado ler Guilherme de Almeida, e me danei a perpetrar uns versos, iguais ou quase, assim me parecia, aos do então novo príncipe dos poetas brasileiros.

Conheci Guilherme de Almeida. Eu o espiava de longe, sem coragem de dizer oi, o que eu faria hoje se fosse estudante como era, na Escola Normal Padre Anchieta, da Paulicéia. Nós o espiávamos de longe, nesse distante 1935. Ainda sei até hoje
Nel mezzo del camin...
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...
E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que te olhar continha.
Hoje, segues de novo... na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

PEÇO QUE OUÇAM, AGORA, ESTE OUTRO POEMA.

Da janela entreaberta, de onde a graça
Da primavera desertou contigo,
Contemplo a gente que depressa passa,
Sem saber deste amor que é o meu castigo.
Não posso te esquecer, por mais que faça,
A paz da indiferença em vão persigo.
Dá-me o destino, que os caminhos traça
A saudade que dói, mas que bendigo.
Há de cessar este meu pranto. E um dia,
Se passares por mim, oh! Fugidia
Miragem do meu sonho, sem me ver,
Não inquietes minha alma, pois que o breve
Romance terminou. Pisa de leve!
Tu que passas por mim, sem me querer.

Engana, não é? A métrica e o arranjo estão perfeitos. E as rimas nos lugares certos. Pois não vale nada, este segundo poema. É meu.

De tanto copiar, decorar, declamar, eu não sabia mais o que era meu ou o que era de Guilherme de Almeida. Resolvi não escrever mais nem o meu nem o dele. E assim, por influência desse grande poeta, era uma vez uma poetisa que se acabou.

E agora, que libertei tudo o que me enchia o coração, a mim me parece que não tenho nada, que de nada disponho, a não ser da minha alegria e da minha força de existir.
Faz minutos que estou falando e não disse tudo a que vim e que é o mais importante. Que vim de longe e que me acenaram. Que me comovem esses gestos amigos de aprovação. E que demoro a confirmar, a aceitar que foi a mim mesma, a peregrina, a viandante, que esta casa de tão alta cultura abriu as portas e acolheu.

Nada mais excelso, nada mais belo e mais puro poderia me acontecer.

E assim tenho mais um pedido a fazer aos confrades e confreiras, amigos e amigas.

Que me ajudem a ver claro, a respeito do que devo, e ouso, e posso, e quero fazer, AQUI.
“A gente passa nessa vida, como canoa em água funda.

Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada. E quando alguém mexe com varejão no todo e turva a correnteza, isso também não tem importância. Água vem, água vai, fica tudo no mesmo outra vez”
texto do romance Água Funda, 1946

Dona Ruth não para. Dorme quatro horas por noite e lê o que pode, tudo o que pode, o mais que pode. Tem um livro rascunhado, outro em produção e um terceiro na cabeça. tem sido assim, nos últimos cinquenta anos, que o digam seus milhares de alunos, que guardam dela ensinamentos de arte, de cultura e de vida.
breve texto retirado do caderno cultural do Vale do Paraíba, escrito pelo seu filho e jornalista Joaquim Maria Guimarães Botelho em 1991.
Todos nós queremos ser ou parecer civilizados. E não há civilização, se não formos protetores do meio ambiente. Seremos o que formos para as plantas e os alimentos. É evidente.

Entretanto, não é hora de imitarmos os nossos companheiros de planeta, em todas as coisas que realizam, e algumas horríveis. Mas é hora de como eles procurarmos remediar uma situação que nos levará ao nada afinal. À destruição realizando aquela velha profecia folclórica, que admite que se não perecemos por causa do dilúvio, pereceremos agora pelo fogo.

Dada à premência de uma decisão, que faremos?

Chegamos a esse fim melancólico, derrubando árvores. Façamos o nosso arrependimento vivo plantando árvores e assim redimindo esse pecado. Muito nos será perdoado.
Ruth Guimarães texto escrito para o projeto CACHOEIRA VERDE da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Cachoeira Paulista da autoria do Engenheiro Paulo Rocha.

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