Santo Genaro, festa e desengano por Ruth Botelho

Santo Genaro, festa e desengano

Ruth Guimarães

Morei no Brás, em São Paulo, quando tinha nove anos. Meu pai fora convidado para assumir a função de contador – guarda-livros, se chamava então – de uma firma de italianos. Ganhava um ordenadão de 400 mil réis por mês. Morávamos bem. Numa vila da Rua Gomes Cardim, iluminada ainda a lampião de gás, que a prefeitura mandava acender toda noite. Lampiões acesos, ruas ainda seguras, prosseguiam os meninos com o pique sem-fim e as meninas brincavam de roda. Meus primeiros e talvez únicos aprendizados do italiano foram os palavrões que a molecada soltava, nas brincadeiras de rua. Talvez o mais comum fosse “Maledeto San Genaro”.


San Genaro, tratado assim, com essa intimidade, essa vizinhança moral, é uma espécie de Macunaíma italiano. Macunaíma é um tipo que está em todos os folclores, mudando o nome, é claro. Ele é João Soldado, é Pedro Malazartes, é Pedro Urdemales, é Ulisses, o Astuto, é Bertoldinho, é Cacasseno, é o velhaco, o safado, o herói sem nenhum caráter. Pouca coisa ficou, entre nós, do folclore italiano, apesar da volumosa imigração que honrou as terras paulistas com a presença de italianos de todas as origens, da Calábria à Úmbria. Fomos mais folclorizados, por assim dizer, pelos portugueses. Talvez porque os italianos não tiveram oportunidade, como os lusitanos, de conviver com os negros, naquela convivência de forno e fogão onde são preparados os caldos culturais que perduram e deixam marcas.

Pois havia em Nápoles um pescador, um tal Cicilo, que todas as manhãs saía do porto com seu barquinho para o alto mar. Certa tarde, durante a pescaria, reparou que o tempo ia mudando, pois começava a soprar aquele vento precursor das tempestades, por isso resolveu recolher as redes e voltar para casa. As tempestades no mar, porém, às vezes surgem repentinamente e Cicilo, no breve prazo de um quarto de hora, encontrou-se no meio de vagalhões tão agitados e tão desordenados que o pobre diabo dizia para si: “Hoje é mesmo o dia em que vou morrer!” Lembrando-se, então, de São Genaro, o grande protetor dos napolitanos, como temos Nossa Senhora Aparecida para cuidar dos paulistas, ajoelhou-se e lhe pediu que o salvasse:

- San Genaro! Tem dó de mim! San Genaro, mio bello! San Genaro, salva-me! Não me deixes morrer! Tu bem sabes que tenho quatro guangliune e a mulher paralítica. Faltando eu, onde iriam buscar dinheiro para a macarronada de todos os dias? San Genato, tu me salvas e, no dia da tua festa, levar-te-ei um feixe de velas! San Genaro, mio bello! San Genaro, salva-me, se queres as velas!

O santo, condoído da sua trágica situação, pediu a Deus que lhe permitisse salvar o infeliz, no que Deus concordou. Imediatamente, a tempestade abrandou, os vagalhões, aos poucos, tornaram-se mais mansos e, por fim, os elementos acalmaram-se completamente, permitindo ao pescador voltar à sua bela Nápoli.

Nos domingos seguintes, quando ia à missa, o santo dava-lhe certas olhadelas esquisitas, como que para dizer-lhe: “Lembra-te da promessa!” e, quando, durante a semana, a borrasca não permitiu pescaria alguma e andava pra cá e pra lá na cidade, ao passar na frente da igreja, tirava o chapéu, mas não tinha coragem de olhar para o santo, pois já estava com o seu plano criminoso traçado.

Chegou, por fim, o dia da festa de São Genaro.

Nessa manhã, o velhaco não queria ir à missa, por receio de que o santo lhe lembrasse a promessa. Não querendo, porém, perder a função, resolveu assistir ao ofício divino da sacristia, evitando, assim, entrar na igreja. O santo, porém, que estava com os olhos abertos, logo que o viu a cruzar a praça da matriz, e dirigir-se para trás do templo, rumo à sacristia, chamou-o apressadamente:

- Cicilo! Olá, Cicilo! Venha cá, Cicilo! E o feixe de velas, Cicilo?

Ele, porém, apesar da gritaria de São Genaro, que se ouvia a légua e meia, tocava adiante, impertérrito, olhando do lado oposto e fingindo não ouvir os chamados. Desta forma, o dia fatídico passou; dia comprido que nunca se acabava, foi aquele para Cicilo. Daí em diante, o descarado mentiroso julgou-se quite de qualquer ônus para com o santo.

Quando o povo de Nápoles ficou ciente dessa tramóia, inventou o tal provérbio popular: “Passada a festa, gabbado lu santo”. (Passada a festa, enganado o santo.)


Colaboração Olavo Botelho

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